sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Conversar é uma forma de amar

O diálogo foi uma das questões mais importantes no surgimento da filosofia. Serviu de modelo teórico de uma ação prática. Platão, na antiguidade clássica, usou-o como estilo para mostrar que a filosofia dependia da conversação. Ele queria mostrar que ela não era uma teoria isolada das relações humanas. Que nascia da diferença do pensamento de cada um que entrava em contato com o pensamento de outro. Chegou a dizer que o pensamento era o diálogo da alma consigo mesma num sentido muito próximo do “falar com os próprios botões” que conhecemos tão bem. Pensar era uma questão de linguagem. O pensamento precisava das palavras, da gramática, da língua, do imaginário, do mito, para se expressar e, por isso, o cuidado com a escolha e o uso de todos estes elementos era tão essencial.

Da conversação é que surgem todas as nossas relações sociais: desde a família até as decisões políticas, passando pela amizade e pelo amor. É porque não sabemos que a arte da conversa é muito mais do que a mera persuasão, que convencimento ou sedução, que perdemos de vista sua função ética. Conversar serve para criar laços sinceros e reais. Com ele se funda o que chamamos sociedade cujo laço essencial é o amor, segundo Humberto Maturana, importante biólogo e filósofo chileno da atualidade.

Ninguém conversa mais

Desaprendemos de conversar por alguns motivos. Um deles é o descaso que temos com as palavras. Nem nos preocupamos em conhecê-las, não avaliamos a história da humanidade que nelas se guarda. Não imaginamos que palavras tão comuns quanto liberdade, memória, história, pensamento, prática, e tantas outras possuem uma vasta história. E não se trata apenas da etimologia, da origem dos nomes, mas da função simbólica, do que está guardado nas palavras como sentido que vai além delas e mostra o mundo humano dos afetos, sentimentos, desejos, projetos. Não apenas os poetas e escritores devem cuidar das palavras, mas todos os humanos.

Conversar é perigoso, dizem os donos do poder

A má política, aquela que se separou da ética, sempre soube o quão perigoso para si mesma era a conversação. Nos campos de concentração da Alemanha nazista era comum a separação de prisioneiros de mesma língua e o convívio de prisioneiros de nacionalidades diferentes. Podemos chamar “violência simbólica”, segundo a expressão do sociólogo do século XX Pierre Bordieu, a este gesto de impedir o contato pela palavra. Sabiam os nazistas que este era um procedimento de tortura mental e também de proteção do regime. Sabiam que a conversa sempre aproxima os seres humanos por criar afetos e, deles, pode surgir algum projeto que modifique alguma coisa que alguém desejava ver sempre igual. A conversação cria cumplicidade. Por isso, todas as instituições autoritárias proíbem a conversação.

Mas o problema maior em nossa sociedade atual é o fato de que incorporamos a proibição da conversa. Introjetamos o medo do contato. Não sabemos mais conversar, perdemos o estímulo quando caímos em depressão ou morremos de medo quando somos tímidos. A frase de Sartre “o inferno são os outros” muitas vezes pode nos socorrer diante do pavor do contato e da relação mais íntima com quem poderia vir a ser um amigo.

Quantas vezes parecemos conversar, mas isso não ocorre. Conversações estranhas, porque sem diálogo, aparecem quando numa festa, num encontro casual, ou na escola, no trabalho, ou mesmo em casa, contamos sobre um filme que vimos. A pessoa a quem nos dirigimos, quem deveria conversar sobre o que lhe dizemos, recorre imediatamente a outro filme que ela viu ou diz não gostar de cinema. Fazemos isso e assim nem conversamos sobre o filme assistido por quem narra o fato, nem o visto por quem o ouve. Perdemos a capacidade de prestar atenção no que foi dito. A capacidade de escutar está em extinção. Se usarmos outro exemplo perceberemos o fenômeno de modo ainda mais claro: quando alguém fala de seus problemas, o outro, aquele que deveria ouvir, sempre comparece com seus exemplos interrompendo a atenção necessária à exposição do primeiro, quando não chega a dizer “não quero ouvir, pois isso não me acrescentará nada”, como se conversar – o que fazemos de mais humano - fosse uma troca mercantil de lucros e ganhos. Ou ainda, interrompe com um “eu sei” prepotente, inviabilizando toda descoberta. Em outras palavras, nos tornamos – em graus variados - incomunicáveis. Em tempos de comunicação de massas, numa sociedade estimulada pela mídia que nem sempre cumpre com seu papel de comunicar, esta se tornou uma questão essencial.

O que teremos a nos dizer no futuro?

Walter Benjamin dizia que a incapacidade de narrar experiências comunicáveis resulta das experiências negativas que sofremos. Um soldado que vai a guerra é o seu exemplo, mas podemos usar nossos mais próximos: aquele que vive na rua sem lar, o que vive na miséria material qualquer que seja, aquele que se sente só num asilo, num orfanato, num hospital. Que criança será capaz de sobreviver em sua intimidade se nenhuma linguagem será capaz de expressar o sofrimento que ela viveu na pele perambulando pelas faróis e, do outro lado, não havendo ninguém que possa ouvi-la? Que poderá ela nos dizer se chegar a ser adulta? Não temos o que dizer aos descendentes de escravos, aos aviltados históricos deste país?

O que temos nós, de fato, a dizer e a ouvir desta esta criança nas ruas? Elie Wiesel, autor de A Noite, quando criança assistiu à morte por enforcamento de um menino num campo de concentração. A condenação fora a condenação do futuro e de toda a humanidade. Mas ainda podemos corrigir os erros. Melhor começar conversando direito, descobrindo o que temos a dizer e ouvir.

Por Marcia Tiburi

Publicado em "Vida Simples", em abril de 2007.

sábado, 21 de agosto de 2010

O tempo é um escultor?

Grupo RBS
Quem de nós já não disse esta frase: “Foi muito difícil passar por isso, mas a experiência me ensinou muito.” Nem sempre, nem sempre. Muitas vezes essas brechas de luz não resistem à passagem do tempo. Elas abrem um fulcro de consciência enquanto a dor nos corrói, mas costumam desaparecer assim que o sofrimento se atenua em nosso interior. Temos coisas mais urgentes em que pensar. Normal. Mais do que isso, é saudável não ficar acariciando as perdas, transformando-as em mascotes de estimação, enquanto nos afeiçoamos ao papel de vítima. Que, apesar de provocar alguns estragos psíquicos, sempre comove os outros. E principalmente a nós mesmos.

Mas há outro aspecto nesta questão que não costuma ser considerado. Com o acúmulo de fatos vividos, com a soma de emoções positivas e negativas, acabamos perdendo a leveza, a curiosidade. Nossas atitudes se tornam mais rígidas. Endurecemos. Perdemos também muito da espontaneidade que parece ser privilégio mais dos jovens, dos muito jovens. Talvez essa equação hospede um equilíbrio necessário para a manutenção do próprio ser. Quando tudo é fulgor e exuberância, fica faltando a sobriedade que se irmana à reflexão e faz com que acertemos mais em nossas escolhas.

Ainda assim, eu não faria a apologia desbragada da experiência. Vamos envelhecendo e, se não tivermos cuidado, tudo vai se tornando menos interessante. É preciso uma força física e emocional extra para sustentar o olhar de espanto sobre o mundo. E perceber como é necessário manter a alteridade em nossos relacionamentos. Continuar aprendendo com quem gosta de fazer esboços, sem o peso e a gravidade de não poder mais errar.

O que o tempo esculpe dentro de nós? O que nos rouba? É recomendável ter muito cuidado para que essa presumível sabedoria que a maturidade nos dá não nos transforme em homens e mulheres tristes. Pior: em chatos cheios de verdades inquestionáveis. A sedimentação de conceitos conduz à intransigência. Como se fosse uma espécie de crime reconhecer que nos enganamos – como se a gente tivesse preguiça para começar de novo. Os caminhos são múltiplos e quase sempre é possível retroceder. O que parece uma espécie de leviandade pode ser o saudável exercício de correr riscos, de experimentar todas as possibilidades que estão a nossa disposição.

Ninguém quer passar horas e mais horas refazendo o itinerário que considerava definitivo. Mas o fato é que a convicção de que vamos nos tornando mais sábios deixa em nós resíduos de arrogância. Será que podemos mesmo ensinar alguma coisa para os outros? O que se chama de vivência não pode ser terceirizada. Cada um trabalha com um martelo próprio e as feições que vai moldando só pertencem a si mesmo. O escritor Pedro Nava dizia que a experiência é como um carro com os faróis voltados para trás.

Seria bom se nos aferrássemos a essa alegria que vemos no rosto dos que continuam nascendo. Ou, se tanto não for possível, pedir emprestado um pouco dessa vontade inquebrantável que os joga para fora de si mesmos, desejando os encontros.

O fastio não precisa ser o prêmio amargo de quem envelhece. Não são apenas os movimentos do corpo que se pode perder. Há algo mais grave: a falta de mobilidade interior.

Fonte: http://www.clicrbs.com.br/pioneiro/rs/impressa/11,3013449,1232,15342,impressa.html

sábado, 7 de agosto de 2010

Além do fato: credo do otário

Texto extraído do blog: "...anseios, dúvidas, questionamentos..."  http://franbecher.blogspot.com/ da minha querida amiga Fran Becher...


Além do fato: credo do otário (por José Murilo de Carvalho)
 

Mais um pleito eleitoral se avizinha. Novos deputados, governadores e senadores serão eleitos. Um(a) novo(a) presidente(a) será eleito(a). Pensando nisso, trago algumas provocações de um autor bastante conhecidos entre os historiadores que se ocupam do estudo da sociedade brasileira. Seguindo o seu conselho, que tal sermos um pouco mais "otários"?



1. Creio na existência do interesse coletivo, na virtude política e na justiça social. Eu sou otário.

2. Creio que o dinheiro do contribuinte é público e é administrado pelo governo, mas não pertence ao governo. Eu sou otário.

3. Creio no direito dos contribuintes de se recusarem a pagar impostos quando o dinheiro público for objeto de malversação pelo governo. Eu sou otário.

4. Creio que os políticos são delegados dos eleitores e têm que prestar contas de seus atos e dar transparência a suas ações. Eu sou otário.

5. Creio no direito dos eleitores de revogar o mandato de representantes infiéis e corruptos, mesmo na duração do mandato. Eu sou otário.
6. Creio que os funcionários públicos de todos os escalões são servidores dos contribuintes e têm que pautar seu comportamento pelo uso honesto do dinheiro público, pela eficiência e pela civilidade. Eu sou otário.

7. Creio que tanto assalta o patrimônio do cidadão o contribuinte que sonega imposto quanto o Estado que cobra impostos escorchantes. Eu sou otário.

8. Creio que são tão corruptos o político e o funcionário público que cobram propina quanto o empresário que oferece propina em troca de favores. Eu sou otário.

9. Creio que a impunidade é a madrinha da corrupção e que a prisão especial para portadores de diplomas universitários viola o princípio da igualdade perante a lei. Eu sou otário.

10. Creio que é mais corrupto o político que compra voto abusando do poder econômico do que o eleitor que vende voto por necessidade econômica. Eu sou otário.

11. Creio que é menos criminoso o camelô que vende produto contrabandeado para sobreviver do que o empresário que subfatura, sobrefatura, lava dinheiro e sonega imposto para se enriquecer. Eu sou otário.

12. Creio que a República é o regime político que se define pela preocupação com a coisa pública e que o clientelismo, o nepotismo, o patrimonialismo, o mensalão são a corrupção da República. Eu sou otário.

Otários do Brasil, uni-vos!

(Texto publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em 18 de agosto de 2005).
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Real Time Analytics